PAULO FREIRE
Globonews - Repórter Edney Silvestre - programa Milênio
No Brasil existem quarenta milhões de analfabetos. Podia não ter nenhum,
porque existe um método simples, direto e barato capaz de
alfabetizar uma pessoa em pouco mais de um mês. Este método foi inventado pelo
brasileiro Paulo Freire há mais de trinta anos. Desde a primeira experiência com trabalhadores rurais em Angicos,
Rio Grande do Norte, que o método Paulo Freire mostrou resultados e eficiência impecáveis. Desde então o método Paulo
Freire vem sendo adotado em diversas
partes do mundo.
E o que fizeram com Paulo Freire no Brasil?
Ele foi
preso após o golpe militar de 64, perseguido e obrigado a viver no exílio.
Apesar de ter voltado após a anistia, mesmo
tendo sido Secretário de Educação, do governo da prefeita Erundina em São Paulo, ele continua sendo mais reconhecido,
homenageado e respeitado no exterior do que no seu próprio país. Ele estava a
caminho de Harvard para dar um curso, quando nós o pegamos para esta
entrevista. Ela foi feita na “Island House”, no centro de cultura da
Universidade de Nova York, que abriu as
portas para nós com a maior boa vontade porque o entrevistado era o mitológico
educador Paulo Freire. É esse brasileiro extraordinário que o “Milênio” apresenta
agora.
Repórter: Como
surgiu o método Paulo Freire de alfabetização?
Paulo Freire: Eu talvez pudesse dizer a você e a quem nos vê e nos ouve, que essa questão
do meu trabalho no campo da alfabetização de adultos e, simultaneamente, no
campo da educação em geral, tem uma origem muito remota, quer dizer, eu não tenho dúvida nenhuma de que
a minha relação com meus pais e o testemunho de meus pais, a
exemplaridade com que eles foram educadores de mim e dos outros filhos, irmãos meus, isso me marcou enormemente e do
ponto de vista da tarefa de ensinar
é algo que também na infância aparecia como no mínimo uma boa curiosidade
diante do mundo, quer dizer, eu fui, as crianças de um modo geral são
curiosas, mas eu tive uma especial curiosidade em saber coisas e querer
aprender. Eu acho que aí está uma remota razão, já na mocidade eu acho que o que mais me tocou para que eu buscasse, para que
eu pesquisasse algo, foi o que me
parecia uma profunda injustiça e uma imensa ofensa aos adultos que não tendo
sido, não tendo tido oportunidade de estudar, enquanto crianças chegaram
a maturidade sem o comando da palavra escrita. Isso me parecia como me parece
um absurdo, quer dizer, é uma espécie de pilhagem, não é? É como se o mundo que
lê pilhasse o mundo que não lê do direito e da possibilidade de ler, quer dizer, a alfabetização, o analfabetismo no
fundo esconde uma proibição, que é
uma proibição de classe social.
Repórter: Dessa razão ética e dessa razão
política é que teria vindo sua paixão por ensinar?
Paulo
Freire: Exato, entende. Eu não tenho dúvida nenhuma de que eu não
posso ser entendido fora de uma compreensão
da ética em mim e da política em mim. Eu acho que nenhum educador, nenhum
pensador da educação está afastado disso. Quer dizer a educação enquanto
formação humana é um esforço
indiscutivelmente ético e estético, quer dizer, não há como separar também a
decência da boniteza, a educação enquanto busca de boniteza necessariamente
procura a decência também, a
decência do ser e a natureza política dela, da educação, nos inviabiliza de ser
neutros, você tem que no fundo ter uma opção, você tem que ter uma
escolha e depois brigar pela sua escolha e
brigar pelo seu sonho. Então, o meu primeiro ponto de partida era essa
convicção de que afinal e não só em alfabetização a educação implica
numa certa convivência ou uma relação, que não
pode ser rompida, entre o conteúdo que se pretende ensinar e a experiência
social e cultural que tem que ver com a identidade cultural, com os
anseios, com os medos, com as frustrações do educando
e não do educador. Isso não significa inclusive que o educador não possa e não
tenha o direito de falar também de suas preferências culturais, mas o
que ele não pode é fazer o trabalho educativo partir de suas preferências
culturais quando sobretudo o que ocorre é uma diferença de classe social entre
o educador e o educando. Nem sempre, mas quase sempre. Então esse é um ponto de vista, primeiro. O segundo ponto de vista,
minha segunda certeza até, mais que um ponto de vista, que eu tinha, e
tenho e continuo tendo é de que no caso da alfabetização, por exemplo, a
alfabetização é uma experiência criadora e significa que o alfabetizando tem
que criar tem que multar pra usar uma
expressão mais técnica o seu sistema de sinais gráficos, quer dizer, ele tem
que ser no fundo o arquiteto desta
produção ou desta criação, obviamente, ajudado, ele ou ela, ajudado pela educadora ou pelo educador.
Mas o que eu quero dizer, é que o exercício de tornar-se capaz de ler e escrever exige de quem realmente aprende uma
postura de sujeito que cria o seu próprio aprendizado.
Eu costumo inclusive usando um jogo, um jogo verbal, eu costumo dizer que você
só aprende quando você apreende a razão de ser do objeto que você
aprende. Entende? Então quer dizer,
aprender é uma experiência de quem cria e não uma experiência de quem é
teleguiado. Então quer dizer, a minha crítica, o que eu chamei de
‘bancarismo’ na educação, que é exatamente essa prática educativa em que o professor deposita, é como se o professor
abrisse a cabeça do educando e metesse lá dentro os pacotes de conteúdos. Isso
é uma inconsistência, isso não tem sentido, então eu defendia por isso mesmo então, o direito que o
alfabetizando tinha, que tem, de fazer parte da criação da sua
capacidade de ler e de escrever. Uma outra coisa pra terminar essa pergunta, é
a certeza que eu tinha e que eu continuo tendo, é que a prática ensinante e a
prática de aprender da aprendizagem, são práticas que se dão num clima que
deve, necessariamente, ser num clima de boniteza,
quer dizer, e de alegria, você imagine uma das coisas mais tristes era a
concepção clássica de uma escola
severa, austera e...
Repórter: Punidora...
Paulo
Freire:...Punidora, em que punir
se apresentava como sendo o caminho sine qua para a formação do educando. Obviamente que eu não estou aqui defendendo uma
pedagogia licenciosa, uma pedagogia espontaneísta de jeito nenhum, eu
estou absolutamente convencido de que a liberdade
não cresce nem se constitui sem limites, quer dizer, ela tem inclusive o grande
problema da liberdade é como assumir
os limites eticamente e não como assumir com medo da autoridade, quer dizer, o
pai que grita, esperneia e que tem o filho silenciado, não é o pai que convence
e que discute e que tem um filho silencioso. Quer dizer, o que eu quero é
um filho que saiba assumir o silêncio e não
um filho que viva silenciado,
entende? E isso exige o respeito ético dos limites, mas eu estava certo e continuo hoje de que a escola
com que eu sonhava era uma escola de alegria, uma escola de festa, mas também e necessariamente uma
escola de rigor, de seriedade científica.
Repórter: O senhor disse na sua expressão "filho
silenciado", me parece uma metáfora interessante pra falar do que se passou com o Brasil em 1964, quando
nós tivemos o golpe militar. O que aconteceu
especificamente com o senhor, a partir do golpe militar de 64?
Paulo
Freire: Exato, eu fui silenciado. Agora eu só não,
obviamente, quer dizer, o país foi silenciado
e o que é incrível não são essas contradições que se dão na história, afinal de
contas os militares silenciaram a sociedade civil brasileira em nome da
fala da sociedade brasileira, quer dizer, em nome do discurso, em nome do
direito de voz, de ter voz, quer dizer, os militares se fundavam na
‘comunistização’ do mundo. E quando eu me lembro disso, eu me lembro que eu fui
apontado, com o processo todo de alfabetização no país, o movimento que eu
coordenava, eu fui apontado como o
‘bolchevizador’ e o anticristo, quer dizer, é uma coisa de um imenso ridículo,
sobretudo quando você pensa que isso foi em 64, se disse isso em 64, é velho
demais! Esse discurso... Me atrasaram demais... É medieval, entende. Eu
hoje acho que o Brasil não tem condições pra golpes, não só o Brasil, mas em tudo o Brasil na América Latina, mas acho
também que a sociedade civil precisa ficar atenta, desperta com relação
a um indiscutível poder do executivo brasileiro, quer dizer, o chamado governar por decretos, quase. Como é que chama aquelas
medidas...
Repórter: ...Provisórias, medidas provisórias.
Paulo Freire: Provisórias. É uma quantidade que
não se acaba, nunca a provisoriedade ficou tão efetiva, entende. Eu acho que isso
é uma ofensa também, à democracia, mas isso no fundo isso é um vestígio do autoritarismo de que o
presidente não escapa como brasileiro, entende. Quer dizer, eu acho que daí a necessidade pra mim à
vigilância que o educador e, portanto um político democrático de opção democrática coerente com a sua opção, daí a
necessidade da vigilância no sentido de buscar a coerência, quer dizer, não é
possível fazer um discurso da democracia e usar tanta coisa antidemocrática, quer dizer, você não pode ter uma
prática antidemocrática pra selar o seu discurso democrático.
Repórter: Mas
em 64 o senhor foi preso, eu não sei se chegou a ser torturado?
Paulo Freire: Não, não, não, mas eu fui, eu acho que fui torturado, entende... Por
exemplo, todos nós fomos, porque no fundo, eu, por exemplo,
quando eu me lembro de que eu fui posto num xadrez...
Repórter: O
senhor foi preso em Recife?
Paulo Freire: Em Recife. Eu fui posto numa cela de um quartel do exército, em Olinda, que
eu te confesso inclusive que
quando o oficial mandou abrir a porta e eu entrei, eu confesso a ti, a você e a
quem nos vê e ouve que eu tomei um susto. Eu
tomei um susto porque eu não imaginava que em 1964,
portanto duas décadas, ou quase três antes de terminar o milênio, houvesse
ainda uma prisão pra gente como aquela e eu pensei que não havia mais
aquilo e o que é triste, é que eu acho que ainda
continua a haver, quer dizer, afinal de contas me puseram numa cela que tinha 1,70 m , que é exatamente o que eu tenho, de fundo, por 0,60 de
largura. Eu te confesso eu acho isso uma ofensa à dignidade humana, entende. Eu faria até agora,
através de vocês um apelo ao poder que nos ouça, não importa se civil ou
militar, que acabe com isso! Vamos ser gente! Vamos ser gente! E não bicho
bravo. Vê bem, a gente briga pelos direitos dos animais e a gente briga com
certeza, com legitimidade na defesa dos outros animais, não é possível que no
nosso mundo, na dimensão da existência você
ainda mantenha prisões desse tipo.
Repórter: Nessa
cela em Olinda quanto tempo o senhor ficou?
Paulo
Freire: Eu passei três dias nela. Mas te confesso,
olha, uma coisa estranha que eu vou te dizer, aprendi algumas coisas, por
exemplo, como... Como por exemplo, aprendi o valor da paciência, que dizer, não de uma paciência de silenciados, mas de uma
paciência silenciosa, de uma paciência que permuta com a impaciência, quer
dizer, aprendi, aprendi também...
Repórter: Não
seria paciência da resistência?
Paulo
Freire: Da resistência, não é? A necessidade
existencial de resistir e por isso mesmo eu aprendi, por exemplo, na minha
experiência de preso, eu aprendi quanto a obediência, às vezes, a obediência do silenciado, que não é ética, mas
quanto às vezes essa paciência, essa obediência do silenciado, é uma
resistência do silenciado, quer dizer, eu me lembrava por exemplo de como deveria ter sido duro o escravo, levando pancadas
violentas, açoites, preso, amarrado no tronco e obedecendo tanto quanto
podia. E a obediência passou a ser uma resistência na medida em que obedecendo mesmo absolutamente, salvava a vida. E
preservar a vida para quem precisa brigar para ‘decentizar’ o mundo é
fundamental. Eu digo no último livro que acaba de sair no Brasil, eu digo que... Não, não, não é esse. O último livro
chama-se “Pedagogia da Autonomia” e esse acaba de sair aqui. Eu digo que o homem e a mulher, através
da história viraram capazes de ‘eticizar’ o mundo, quer dizer e não
havia como continuar sendo homem e mulher sem ética. E precisamente ou somente
porque somos nós os viabilizadores da ética ou da ‘eticização’ do mundo, nós
somos também capazes de transgredir a ética. Você, por exemplo, nunca ouviu
falar que tigres africanos tenham sacudido
bombas em cidades de tigres asiáticos, e isso, nunca se ouviu falar na história
que uma família de leões tenha
covardemente matado membros de outra família e a noite tenham ido à família
levar o seu pêsame. A gente faz isso, entende, nós fazemos isso. Pra mim então,
uma das brigas que a gente deve dar enquanto estiver no mundo e com o mundo e
com os outros é exatamente diminuir a possibilidade de transgredir a ética,
portanto, de assumir eticamente de tal forma a ética que você diminua a
possibilidade de ‘deseticizar’ o mundo, portanto de evitar as transgressões, você veja com o mundo todo, não é
só o Brasil, mas no nosso caso particular, quer dizer como a sem-vergonhice que se democratizou de maneira
extraordinária no país. E é preciso, a sociedade precisa voltar, é
preciso que se perceba no Brasil que a impunidade vai se acabar entende? Porque sem, com a impunidade você não restaura
a ética, não creio. Só com discurso não faz, entende? Quer dizer, eu acho que
essas coisas que não são valores precisam ser tomadas muito a sério hoje, pelos políticos que são educadores e
pelos educadores que também são políticos, quer dizer, não é possível esquecer isso, a ética que está campeã do mundo é a
ética do mercado. E essa é uma ética
malvada e perversa, absolutamente perversa. É uma ética ‘deseticizante’ e a
gente precisa lutar pela ética
universal do ser humano, quer dizer, a ética que corresponde a uma natureza
humana que se vê social e historicamente
constituída através dos tempos.
Repórter: A entrevista com Paulo Freire foi tão extraordinária que
pela primeira vez uma edição do “Milênio” vai
ter continuação. A segunda parte da entrevista com Paulo Freire será
apresentada semana que vem. Até lá!
Parte de
entrevista de Paulo Freire para o “Milênio”, você vai conhecer o lado mais
íntimo do educador, do homem que aos 66
anos reencontrou o amor. Aqui também ele fala da vida no exílio, a visão
de uma sociedade mais justa e mais humana, e mostra uma incansável esperança
num mundo melhor, mesmo que este mundo
melhor, como diz o próprio Paulo Freire, só chegue muito depois dele ter partido.
Repórter: O senhor é idealista, um sonhador,
o senhor tem esperança?
Paulo Freire: Claro, claro. Essa questão da esperança e comigo é uma
coisa muito interessante, precisamente pela
forma ou pela maneira ou pela razão como eu entendo a esperança na existência humana, quer dizer, há pessoas que me consideram
um sonhador e eu sou um sonhador, mas não um sonhador maluco. Mas há pessoas que me consideram um idealista, mas
um idealista perigoso e pra mim não. Pra mim a esperança, a esperança faz parte
disso que a gente vem chamando natureza humana, que no fundo é algo que
se constitui social e historicamente na nossa experiência no mundo com os outros. E por que isso? Eu estou
absolutamente convencido de que a inconclusão, o interminado é uma
característica da experiência vital. Quer dizer, onde há vida há inacabamento,
mas ao nível da experiência
existencial que é a nossa, o inacabamento que continuou, nós somos tão inacabados quanto às árvores, quanto os animais,
outros...
Repórter: O senhor está chamando de inacabamento a continuidade?
Paulo Freire: Exato. E pela incompletude do ser mesmo. Mas acontece que
ao nível nosso, do homem e da mulher e nós
nos tornamos capazes de em certo momento dessa experiência histórica do próprio inacabamento nós nos tornamos capazes de
conhecer ou conhecer-nos como inacabados. Quer dizer, o inacabamento,
mais do que o puro inacabamento, nós somos conscientes do inacabamento. Ora, a minha tese é a seguinte, um
ser que inacabado, se sabe, porém, inacabado ele necessariamente se
insere num permanente processo de procura. A educação é esse processo, e agora a minha pergunta é a seguinte: será possível
procurar-se a esperança? Entende, quer dizer, eu acho uma imensa contradição, por isso eu respeito
os desesperançados, eu reconheço
razões de ser que explicam a desesperança, mas a desesperança é um desvio, é
uma distorção da vocação de caminhar que é
nossa, que nós inventamos, entende? Então a esperança em mim não é como
eu disse num dos meus livros mais recentes, eu não sou teimosamente esperançoso, quer dizer, eu não sou esperançoso
por teimosia, eu sou ontologicamente, faz parte da natureza do meu ser a
esperança. Então eu não posso negá-lo, agora o que é que acontece? Há momentos históricos e que pertencem não só a mim,
não apenas da minha história individual, mas também dela e da história social
em que eu me deixo tocar, pelo risco da desesperança, no momento em que eu me percebo um pouco desesperançoso eu
resisto, entende. Eu resisto, quer dizer, eu brigo contra mim mesmo ou brigo comigo mesmo. Eu
analiso a razão de ser da minha desesperança para poder superar essa razão de ser. Quer dizer, no
fundo eu sou inveteradamente esperançoso, eu tenho um certo gosto, um gosto gostoso, um gosto
verdadeiro que é no meu ser, na intimidade do meu ser de brigar pela esperança. E fora disso eu não me entenderia
no mundo.
Repórter: Mas mesmo hoje, mesmo depois do que aconteceu no Brasil
em 64, do que aconteceu no Chile em 75, mesmo depois da queda dos países socialistas da União
Soviética, o senhor ainda tem uma esperança política ao menos de construir uma sociedade mais justa?
Paulo Freire: Claro, talvez até mais do que antes. Eu... Olha, eu não tenho dúvida
nenhuma de que com a queda do chamado
muro de Berlin, com a queda do chamado socialismo... Socialismo como é que é? Tinha um nomezinho oficial, que no fundo era um
socialismo ‘policialesco’, com a queda do estalinismo eu acho que o
sonho por um mundo menos feio vai ter condições, não exatamente agora, mas
passada a estupefação que no fundo, por exemplo, comecemos pela estupefação das
esquerdas, as esquerdas no mundo entraram em estupefação diante das pedras do
muro caído. Levantando-se da estupefação
alguns elementos da esquerda ficaram mais rigidamente estalinistas, é
uma minoria que eu acho que, com todo o respeito que eu tenho, é uma
minoria que perdeu o endereço da história,
uma quantidade razoavelmente grande dessa esquerda que lutou, que brigou em
defesa dos interesses populares, em defesa da decência, em defesa dos silenciados,
para que aceitem o silêncio enquanto manifestação ativa da luta, mas jamais ser
silenciados. Uma grande quantidade de gente
da esquerda estupefata aderiu ao discurso neoliberal. E veja bem, eu acho que eu e você temos um direito extraordinário que é o
direito de mudar, não tenha dúvida, eu brigo pelo direito que eu tenho de mudar, agora eticamente eu
acho que eu tenho que assumir que mudei, o que eu não posso é mudar e dizer que não mudei, o que eu não posso é mudar e
pretender ter, continuar a ter o
mesmo respeito dos meus companheiros anteriores que me respeitavam precisamente
pelas ações políticas contrárias as que eu tenho hoje, entende, quer
dizer, por exemplo, se eu amanhã cismar e me convencer de que o discurso
neoliberal é o correto eu escrevo um livro sobre isso e digo: “olha, não venha aqui pra falar em processo
libertador porque eu acredito mesmo é na ideologia imobilizadora da história, o
que eu acredito mesmo, é que a educação deixou de sonhar, não há mais que sonhar na educação, não há mais que pensar em
utopias na educação, a educação tem que ser uma prática, uma experiência
puramente pragmática de treinamento do educando”. É treinar tecnicamente e cientificamente o educando, mas
enquanto, o que eu não posso é virar esse tipo de homem, querendo,
contudo dizer que sou o mesmo que escreveu esse livro que está na sua mão “Cartas à Cristina", entende. Não é, eu preciso
ser coerente com o direito que tenho de mudar. Mas você me perguntou se apesar de tudo isso eu
continuava otimista, esperançoso...
Repórter:
O senhor ainda acredita
na utopia socialista?
Paulo Freire: Eu acredito, eu não vou ver esse
negócio, mas a história não se faz, a história não se faz com as presenças de quem sonha, todos os caras que
sonham presentes pra ver a história mudando isso, mas os outros que vêem, eu
acho o seguinte, que Darcy (Ribeiro) não vai ver, outro, Callado (Antonio)
grande homem que morreu tão recentemente, eu, você, nem você vai possivelmente
ver, mas seus netos vão ver. Eu não creio,
te confesso, acreditando nisso, que eu chamo projeto humano e mesmo que
ameaçado e submetido a uma série de influências tecnológicas indiscutíveis no
mundo que podem amaciar a
curiosidade, amaciar a vontade, mesmo assim eu acredito que o projeto humano
ganhará um dia. Quer dizer, recentemente eu li um artigo de um padre
suíço, de um jornal suíço, de um título
muito grande e era mais ou menos o seguinte: "será, será que a
globalização dará ou não dará lugar a um outro maio de 68?", quer dizer,
um artigo excelente, sobretudo um suíço mostrando com uma imensa inquietação a inviabilidade da continuidade
de um tal processo, quer dizer, eu acho que no mundo, o que há de gente em nós e vai se rebelando e vai se rebelar,
contra uma ética que só cuida do núcleo, entende? Essa não é a ética
humana, uma ética, olha, eu te digo mais, a liberdade de comércio que se sobrepõe à liberdade das mulheres e
dos homens é uma licenciosidade e não uma liberdade é uma imoralidade, quer
dizer, isso é imoral. E eu não creio que a gente perdure muito tempo tão
imoral, quer dizer, convivendo com distorções, então, mas é claro, você tem
todo o direito como centenas de pessoas que
possam me ver e ouvir, e dizer: “Paulo, continuas um sonhador”, graças a Deus, continuo um sonhador, quer dizer,
eu aposto no projeto humano.
Repórter: Há uma história curiosa sua, pessoal, que eu não sei se o
senhor se incomoda de contar, que foi seu reencontro com dona Ana Maria.
Paulo Freire: Com?
Repórter: Com dona Ana Maria, com a sua
esposa. O senhor se incomoda de contar?
Paulo
Freire: Ana Maria é minha
mulher, nós nos casamos há oito anos, eu devo muito, eu tinha perdido minha primeira mulher que
trabalhou enormemente comigo e que me acompanhou, que me ajudou, que me assessorou... Até que
eu tenho uns amigos que dizem que eu era a teoria da prática dela...
Repórter: A Elza?
Paulo Freire: A Elza. Eu acho que era uma injustiça a ela, e uma injustiça a mim, ela era
também teórica e eu também sou prático. Mas ela
morreu e a morte da Elza me destroçou e a morte do marido da Ana Maria também a
destroçou. E ela, nós somos amigos desde ela menininha e nos casamos, nos casamos em busca da reinvenção de nós
mesmos, quer dizer, abalado como eu estava, mas uma coisa interessante, eu
estava abalado, mas não desesperançado. Até aí nesse momento, que foi um
momento dramático da minha vida. Mas a chegada da Nita, e foi absolutamente
importante e fundamental, quer dizer,
ela me ajuda a refazer-me, a me reconstruir, quer dizer, essa é uma outra que
eu acho quando a gente descobre humildemente a importância de uma outra pessoa
na reconstrução da vida da gente. É uma coisa bonita também, é uma coisa
gostosa. Eu tenho, quer dizer, a minha
gratidão por Nita é menor do que o meu amor por ela, quer dizer, porque se só
fosse gratidão não valia, por
gratidão eu não continuaria com ela, mas que existe também a gratidão, existe. Mas existe uma amorosidade que reforça a
gratidão.
Repórter: No tempo que o senhor
vivia no exílio, como o senhor se sentia?
Paulo Freire: Olha, eu só não te diria que eu me
sentia destroçado porque afinal de contas
é muito difícil com que eu me
destroce, entende, mas eu sofri profundamente. Então, havia dimensões da nossa cultura que me fustigavam, como
por exemplo, o gosto da comida, o gosto da comida era uma coisa no exílio,
enorme, quer dizer, quando eu viajava pros Estados Unidos ou quando eu viajava
pra outros países da Europa, eu saía, eu já tinha os endereços de onde
conseguia comer uma má ou boa, porque pra mim é sempre boa uma feijoada, mas a
música também, a língua, a entonação, afinal de contas, eu acho que a cultura
que é tudo isso e mais do que isso é uma coisa que não nos deixa, quer dizer, você quando anda, você anda com a sua cultura e
não há como sacrificar sua identidade cultural.
Eu acho, eu nunca me senti melhor do que ninguém porque sou brasileiro, mas
nunca me senti pior do que ninguém
porque sou brasileiro, quer dizer, eu tenho uma alegria especial por ser brasileiro e não um orgulho maluco, porque seria
inclusive burrice, mas um gosto, um gosto de falar esse português nordestino,
entende? .
Repórter: O gosto mesmo tendo sido expulso do seu país, mesmo não podendo voltar ao seu país ainda sim o senhor mantinha?
Repórter: O gosto mesmo tendo sido expulso do seu país, mesmo não podendo voltar ao seu país ainda sim o senhor mantinha?
Paulo Freire: Claro, eu mantinha e mantenho a vida
toda precisamente porque quem me expulsou do país não foi o país, foi o poder,
o poder, que em certo momento da história desse país, o poder que tinha o poder e me expulsou. Eu
não poderia penalizar o país inteiro por causa da distorção de um poder que é histórica, entende? Então eu jamais tive
qualquer mágoa do Brasil, jamais. Nem sequer
eu tive mágoa de organismos, de universidades, por exemplo, que tiveram que
ficar caladas, silenciadas quando eu fui preso, minimizado, diminuído, expulso,
etc., nada, nada, eu acho que não tinham
como brigar.
Repórter: No Brasil hoje, se acredita que
existam 40 milhões de analfabetos. O que é que isso diz da sociedade brasileira?
Paulo Freire: Olha, isso
continua falando da falta de decisão política da sociedade brasileira, inclusive da classe dominante brasileira, quer
dizer, olha, educação é saúde, segurança, esses são problemas que implicam uma vontade política,
entende? Eu não tenho dúvida nenhuma que se você tem uma vontade
política necessariamente o dinheiro vem. Por exemplo, evidentemente que não vem facilmente, mas você tem que fazer certas
transformações nas estruturas do poder. Quer dizer, você não pode pagar menos imoralmente aos
professores no país, do Brasil, e se você não fizer uma reforma na
política de gastos no Brasil. Quer dizer, veja bem, eu não sou contra que um profissional, um procurador, por exemplo, ganhe
muito bem, mas o que eu não posso entender é a distância entre o que ele ganha
e que ganha uma professora seja tão grande. Quer dizer, é preciso haver um acerto nessas coisas, quer dizer, eu não
estou propondo que se diminua o salário de quem ganha bem, mas o que eu
quero, o que é preciso fazer é ‘desumilhar’ quem não ganha, quer dizer, quem é ofendido. Você imagina no nordeste
brasileiro tem professor ainda ganhando quinze reais e comprando giz com esse dinheiro.
Repórter: Elas...
Paulo
Freire: Elas mesmas. E depois se fala tanto contra, se fala tão
mal das professoras brasileiras, dos professores. Eu tenho uma profunda estima
pelas professoras e um profundo respeito,
porque fazerem o que fazem, apesar de tudo é uma coisa maravilhosa. Agora o
descaso histórico do poder nesse país
com relação a educação e a dignidade da educadora é uma coisa que me
deixa alarmado, quer dizer, esse descaso é tal que as vezes eu tenho a
impressão de que presidentes de república, governadores de estado e prefeitos
não tiveram na vida deles uma professora primária que os ensinou. Eles estão de
tal maneira distante do mundo, de uma professora que se acham superiores à
experiência de uma professora e elas só aparecem em determinadas festividades pra dizer que foi a professora do presidente e o
presidente abraça, que a impressão que eu tenho é que presidentes de
república, governadores de estado vem de outro mundo, de um mundo diferente, caem, são mandados por Papai do Céu, entende?
Quer dizer, agora, eu não tenho
dúvida nenhuma de que é preciso que um governo, que eu chamo de sanamente
insano e só assim você pode consertar
as coisas, numa mescla de insanidade na sanidade, entende?
Repórter: Professor, como o senhor quer ser lembrado?
Paulo Freire: (risos) Ótimo! Tá ótimo! Olha, essa é uma pergunta muito gostosa. Eu até
que vou aprender a fazer essa
pergunta à outras pessoas. Tu sabes que eu nunca tinha pensado nisso, mas agora que você me desafia e talvez
a minha resposta seja pouco humilde, talvez seja. Eu acho que não. Quer dizer, eu
gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente mundo, e as pessoas, os bichos, as
árvores, as águas, a vida.
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/178275511/12-Entrevista-Paulo-Freire